Traduções Bíblicas são Confiáveis? – Parte II

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No artigo anterior, vimos algumas das principais dificuldades que podem ser encontradas quanto às traduções bíblicas. Neste, veremos mais algumas:

4) Teologia Pré-Concebida
Muitas vezes, o problema não está na tradução em si, mas no fato de que as pessoas que lêem o texto já têm uma ideia previamente concebida do que aquela palavra (ou aquele texto) significa, quando na verdade o sentido é outro.

Veja, por exemplo, o texto abaixo:

“O nosso Deus é o Deus da salvação; e a DEUS, o Senhor, pertencem os livramentos da morte.” (Salmo 68:20 – Almeida Corrigida e Fiel)

A maioria das pessoas quando lê a palavra “salvação”, imediatamente associa a um conceito de salvação espiritual, ou coisa semelhante.

Porém, se você observar o contexto, imediatamente abaixo é dito: “Mas Deus ferirá gravemente a cabeça de seus inimigos e o crânio cabeludo do que anda em suas culpas.” (Salmo 68:21 – Almeida Corrigida e Fiel)

O problema, nesse caso, não é da tradução, mas do que as pessoas pensam quando lêem “salvação”, visto que já esperam que o texto diga algo que não diz.

Porque não existe na Bíblia Hebraica o conceito de salvação espiritual. Tal conceito é exclusivamente presente no Cristianismo e seria equivocado atribuí-lo ao período da Bíblia Hebraica, onde o conceito do termo é sempre livramento do perigo e da angústia.

De propósito, escolhi um texto em que o contexto deixava isso claro. Porém, há várias passagens nas quais o contexto não deixa isso claro. É importante, portanto, o estudo das Escrituras, pois não é culpa das traduções quando as pessoas lêem B no lugar de A.

5) Divisão Capitular
Nem todos sabem, mas originalmente a Bíblia Hebraica não foi escrita com divisão em capítulos e versículos. Tal coisa surgiu por volta dos anos de 1200 e, desde então, ganhou tanta popularidade que tornou-se unânime nas traduções.

Esse sistema facilita muito encontrar pequenos trechos dentro da Bíblia, mas frequentemente cria uma divisão totalmente artificial do texto, frequentemente dividindo um assunto em duas partes, fazendo com que o leitor perca o fio da meada.

O exemplo mais fácil de se observar disso está em Gênesis 1 e 2. Em Gênesis 1, temos a criação dos céus e da terra. No capítulo 2, o relato muda para a história do Éden. Porém, se o leitor observar bem, o final do relato de Gênesis 1 está no 2:1-3. Ou seja, o capítulo 1 de Gênesis deveria ter 35 versículos e o capítulo 2 deveria começar no versículo 4.

Há quem diga que essa divisão foi meramente pra criar capítulos com o mesmo tamanho. Há, porém, quem diga que o objetivo é teológico. Neste caso, tirar a ênfase do sábado (Shabat) enquanto dia sagrado, considerando que isso foi ponto de disputa nas igrejas cristãs.

Há casos ainda piores. Por exemplo, a maioria das pessoas lê Isaías 53 isoladamente e não faz a menor ideia de que esse trecho, chamado “Cânticos do Servo”, começa no capítulo 42. Mesmo se lessem a partir do 52 (coisa que quase ninguém faz), ficaria nítido que o texto é uma referência ao sofrimento de Israel no exílio.

Infelizmente, a divisão capitular cria tantos problemas quanto resolve, favorecendo determinados dogmas e até mesmo complicando o entendimento de determinados assuntos. Porém, o leitor não encontrará no mercado um texto sem isso, então, é preciso se adaptar a essa realidade.

6) Estilo da Tradução
Um problema natural que decorre de um processo de tradução é a escolha que o tradutor precisa fazer quanto a ser o mais literal possível, ou o mais fiel à ideia que o texto quer transmitir. Para um leigo, a ideia de ser bastante literal pode parecer melhor, mas nem sempre é assim.

Darei um exemplo a partir do inglês. Imagine uma história onde um homem terá uma reunião importante e sua esposa lhe diz: “Break a leg!” No inglês, essa expressão idiomática significa “boa sorte”. Porém, literalmente, a frase diz: “Quebre uma perna!”

Se escrever “boa sorte”, o tradutor pode ser acusado de falsificação. Porém, se escrever “quebre uma perna”, pode transmitir a ideia errada de que a esposa esteja com raiva do marido. Não existe saída fácil.

Assim é com as traduções bíblicas: Algumas procuram traduzir mais ao pé da letra, outras se preocupam mais em transmitir a ideia. Isso não deve ser visto como tentativa de falsificação, mas sim um problema inerente ao processo propriamente dito.

7) Fonte da Tradução
Na série sobre os artigos da manuscritos da Bíblia Hebraica, falamos sobre as diferentes versões do texto bíblico, inclusive explicando porque elas existem. Essas versões possuem pequenas variações entre elas, de alguns detalhes.

Muitas vezes, a diferença quanto à tradução pode estar na origem e não na tradução em si. Algumas traduções, por exemplo, seguem o Texto Massorético. Outras seguem a Septuaginta. Outras ainda fazem o que chamamos de crítica textual, olhando para vários manuscritos e tentando determinar a leitura mais original.

Observe o abaixo, do Salmo 145:13-14:

“Teu reino é reino para os séculos todos, e teu governo para gerações e gerações. O Senhor é verdade em suas palavras todas, amor em todas as suas obras; O Senhor ampara todos os que caem e endireita todos os curvados.” (Bíblia de Jerusalém)

“O teu reino é um reino eterno; o teu domínio dura em todas as gerações. O Senhor sustenta a todos os que caem, e levanta a todos os abatidos.” (Almeida Revista e Corrigida)

Repare que o texto da Bíblia de Jerusalém é bem mais longo. Isso porque ele segue o padrão da Septuaginta e dos Manuscritos do Mar Morto, enquanto a Almeida segue o Texto Massorético.

Sabe-se que muito provavelmente o Texto Massorético tem uma glosa nesse trecho, onde o copista sem querer pulou uma linha, pois trata-se de um poema em que cada linha começa com uma letra do alfabeto e está faltando a letra Nun.

Uma pessoa que não vá na fonte pode ficar com a impressão – equivocada – de que uma ou outra tradução esteja deliberadamente falsificando o texto bíblico, o que não é o caso.

Conclusão
Como se pode observar, existem dificuldades que vão muito além da tradução propriamente dita. Na realidade, a maioria dos casos em que temos algum tipo de problema, a questão não está no processo de tradução em si, mas em outros fatores que podem complicar.

Diante de tantas questões, é natural que o leitor se pergunte: Como faço para não cair em erro, considerando todas essas coisas?

Felizmente, existem formas de lidar com a questão. No próximo artigo, falarei sobre o que podemos fazer para nos proteger de cair em tais armadilhas.