O Simbolismo Esquecido da Festa dos Ázimos

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INTRODUÇÃO

“No primeiro mês, aos catorze dias do mês, à tarde, comereis pães ázimos até vinte e um do mês à tarde. Por sete dias não se ache nenhum fermento nas vossas casas.” (Êxodo 12:18-19a)

Anualmente, uma quantidade enorme de pessoas comemorará a Festa dos Ázimos, removendo de suas casas a massa levedada por uma semana, em virtude da ordenança acima indicada.

Todavia, é triste constatar que o principal simbolismo da semana dos ázimos se perdeu para a maioria das pessoas.

FESTIVIDADES DIFERENTES

A primeira coisa a observar é que, ao contrário do que se pensa no popular, a Páscoa (Pessa’h) e a Festa dos Ázimos (Hag haMassot) são coisas diferentes:

“No mês primeiro, aos catorze do mês, à tardinha, é o Pessa’h do ETERNO. E aos quinze dias desse mês é a Festa dos Pães Ázimos do ETERNO; sete dias comereis pães ázimos.” (Levítico 23:5-6)

O Pessa’h era o sacrifício ritualístico que celebrava o ato propriamente dito de saída do Egito. Ele inclui, entre outras coisas, comer pão ázimo. Porém, o comer pães ázimos por sete dias é uma segunda festividade distinta. E ela tem um simbolismo.

É justamente porque essas duas festividades acabaram sendo popularmente unificadas numa só – o que é compreensível, porque começam juntas – que um simbolismo importante da Festa dos Ázimos está praticamente esquecido.

O SIMBOLISMO PERDIDO

Muita gente acha que comemos ázimos simplesmente porque os israelitas saíram apressadamente do Egito e não houve tempo para a massa fermentar (Êxodo 12:39). Mas, há um outro motivo ainda mais importante. Observe:

“Nela não comerás levedado; sete dias nela comerás pães ázimos, pão de aflição [le’hem `ani – לֶחֶם עֹנִי] (porquanto apressadamente saíste da terra do Egito), para que te lembres do dia da tua saída da terra do Egito, todos os dias da tua vida.” (Deuteronômio 16:3)

A palavra `ani, aqui utilizada, vem de `aná [ענה] que significa estar encurvado. Como o hebraico bíblico é uma lingua muito pitoresca, essa imagem lembra aflição, humilhação ou pobreza.

No Êxodo, ela é utilizada para se referir à situação dos israelitas: “Então disse o Senhor: Com efeito tenho visto a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheço os seus sofrimentos.” (Êxodo 3:7)

Observa-se um resquício desse simbolismo na lei religiosa judaica, que traz:

“Massá… não deve ser sovada com vinho, óleo, mel, ou leite, por causa do requisito de ser pão da miséria [Dt. 16:3], conforme explicado acima. Uma pessoa que sovou [com um desses líquidos] não cumpre a obrigação.” (Mishnê Torá – Sefer Zemanim – Hilkot Hames uMassá 6:5b)

A diferença entre religiosidade e espiritualidade está justamente em entender os motivos por trás disso, para que possamos compreender o que está sendo transmitido.

O PÃO DA MISÉRIA

Pães eram parte importantíssima do cardápio no antigo Oriente Médio. Pães mais sofisticados poderiam permanecer fermentando por um bom tempo – e incluíam passas, azeite, mel, entre outros. Alguns eram tão sofisticados como os Panetones da cultura ocidental.

Porém, o pão sofisticado, feito de trigo, com uma série de coisas agregadas na massa e fermentado por um bom tempo, era o pão dos mais afortunados e mais abastados. Não era o tipo de alimento que as massas comiam.

Uma pessoa pobre, humilde – tal como os israelitas eram no Egito – comeriam cevada, misturada com água, com pouca ou nenhuma adição de ingredientes especiais. E, como tinham pouco alimento e pouco tempo disponível, não podiam se dar ao luxo de deixar fermentar por longos períodos.

Eles precisavam se alimentar mais rapidamente, com o pouco que tinham. Algo parecido com a maneira como os beduínos fazem pão até hoje, no Oriente Médio, conforme mostra a foto que ilustra este artigo.

Pode-se ver um indício dessa diferença na cultura semita quando comparamos a história de Abraão, que aparece servindo pão aos mensageiros do Eterno (Gênesis 18:5) com a de seu sobrinho Ló, sempre descrito como inferior em sua dedicação, que serve ázimos (Gênesis 19:2).

A solenidade dos ázimos, portanto, tem um objetivo importante: Fazer com que não nos esqueçamos das pessoas mais humildes, lembrando para isso que um dia nossos antepassados foram servos no Egito.

Esse simbolismo é observado pelo Hakham Dr. Isaac Sassoon, que diz: “Deuteronômio repetidamente lembra o povo de sua escravidão no Egito com o propósito declarado de motivá-los a serem bons e generosos ao lidar com os menos afortunados. Tendo sido, eles próprios, de status inferior, devem empatia e identificar-se com os humildes e desprivilegiados.” (An Ideal Exodus)

BANQUETE E HUMILDADE

Nos tempos bíblicos, as solenidades eram essencialmente grandes banquetes: “E aquele dinheiro darás por tudo o que desejares, por bois, por ovelhas, por vinho, por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; comerás ali perante o ETERNO teu Senhor, e te regozijarás, tu e a tua casa.” (Deuteronômio 14:26)

Isso não é diferente no Pessa’h, onde o cordeiro era comido por inteiro pela família, juntamente com uma refeição festiva. No antigo Oriente Médio, o consumo de carne era muito menor do que o da nossa sociedade, e esse tipo de comida estava muito associado a épocas festivas.

Mesmo no banquete, o “pão da miséria” deveria estar presente. E, a ele, deveria se suceder um período em que os israelitas comeriam apenas o “pão da miséria”, por sete dias. Ou seja, depois da fartura da celebração, a lembrança da pobreza.

Agora podemos compreender melhor o sentido do texto bíblico: “Por sete dias comereis pães ázimos; logo ao primeiro dia tirareis o fermento das vossas casas, porque qualquer que comer pão levedado, entre o primeiro e o sétimo dia, esse será cortado de Israel.” (Êxodo 12:15)

Infelizmente, a religiosidade transformou a prática acima numa busca frenética por qualquer resquício de pão levedado dentro de casa, e numa corrida contra o relógio pra fazer pão ázimo em tempo recorde, quando o objetivo era outro.

Não é que o Eterno tenha algo contra o pão levedado em si. Mas sim que aquele que não tivesse a capacidade de ter empatia pelos menos afortunados, de identificar-se com os que sofrem, não poderia fazer parte de Israel.

Como já dito exaustivamente, o número sete era simbólico, na cultura semita, de um período completo. Portanto, a ideia era identificar-se com os humildes durante um ciclo completo.

Uma pessoa não-caridosa, orgulhosa em suas riquezas, incapaz de se identificar com o sofrimento alheio jamais serviria de base para uma sociedade saudável. Por isso a enorme preocupação bíblica de não nos esquecermos de nosso passado de angústia, sofrimento, e nos deixarmos levar por orgulho e vaidade. (Infelizmente, uma lição aqui ainda não aprendemos totalmente.)

RETOMANDO O ESPÍRITO DA COISA

Como bom herege que sou (leia-se: alguém que não se conforma com dogmatismos), proponho que aqueles que querem realmente viver a essência da solenidade procurem se preocupar mais com a vivência da empatia do que com aspectos ritualísticos.

Existem alguns casos, infelizmente ainda raros, de pessoas que entenderam o propósito, como a corajosa Ilana Schatz, que anos atrás “chocou” a comunidade colocando grãos de cacau na mesa do Pessa’h para chamar atenção da comunidade ao trabalho escravo infantil na industria do chocolate. (Você pode ler sobre isso neste link.)

Voltando à Festa dos Ázimos, repare que o objetivo não era ajudar os necessitados, por mais que isso seja nobre. O objetivo era ENTENDER os necessitados, era saber, vivenciando, o que eles passam.

Proponho, portanto, abaixo algumas ideias que podem ajudar nesse sentido:

  • Já imaginou se, por uma semana, ao invés de nos preocupar em comprar bolos caros feitos de farinha de pão ázimo – que ironicamente vai na contra-mão do espírito da coisa – ou com fazer algum tipo de dieta envolvendo o estado do glúten, realmente procurássemos viver como os humildes?
  • E se, por uma semana, você deixasse de ir de carro pro trabalho, para usar condução pública? Ou andasse a pé até os lugares mais próximos?
  • E se, por uma semana, você fizesse faxina em sua casa, ao invés de contratar alguém para fazê-lo por você?
  • E se, por uma semana, você atendesse os clientes de sua empresa e desse folga pros seus vendedores?
  • E se, por uma semana, você não comesse nada além daquilo que está numa cesta básica, ou fosse comer no restaurante Bom Prato?
  • E se, dentro dessa semana, você visitasse favelas, creches, hospitais públicos, entre outros, para tomar contato com a realidade das pessoas mais humildes, para entender o que elas sofrem?
  • E se nos esforçássemos para tentar ter essa experiência, ao invés de nos iludir? E se déssemos ouvidos de verdade a tudo que foi dito nos profetas, entendendo que a ritualística pouco importa, pois não é isso que fará o Eterno se agradar de nós?
  • E se realmente buscarmos a transformação?

Isso vale não só para Israel, mas também para todos aqueles que queriam “fazer o Pessa’h” e, muitas vezes, invejam Israel, desejando a ritualística, sem contudo realmente se preocupar com o espírito da coisa.

Talvez, se isso acontecesse, veríamos o início da Era de Ouro da humanidade. Ou, pelo menos, poderíamos cumprir o papel de ser luz para as nações.