“Não acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do ETERNO vosso Senhor, que eu vos mando.” (Deuteronômio 4:2)
“A Bíblia não muda. Querem mudar a Bíblia!” – Disse o pregador, numa mensagem raivosa e carregada de emoções.
Essa frase costuma calar todo e qualquer debate sobre a aplicação bíblica de determinado conceito. Mas, ela é mais complicada do que parece.
Embora o texto de Deuteronômio 4 seja enfático ao proibir acréscimos e diminuições das palavras do Senhor, no próprio livro de Deuteronômio encontramos:
“Não poderás sacrificar a páscoa em nenhuma das tuas portas que te dá o ETERNO teu Senhor; Senão no lugar que escolher o ETERNO teu Senhor, para fazer habitar o seu nome, ali sacrificarás a páscoa à tarde, ao pôr do sol, ao tempo determinado da tua saída do Egito.” (Deuteronômio 16:5,6)
Deuteronômio é uma repetição das leis bíblicas de Êxodo, Levítico e Números. Porém, o trecho acima é uma instrução nova, que não vemos em lugar algum dos livros anteriores! E esse é apenas um exemplo. Há inúmeras coisas que Deuteronômio acrescenta na prática bíblica!
Ora, será que Moisés se esqueceu da própria regra?
Das duas uma: Ou temos que jogar fora o próprio livro de Deuteronômio, o que seria uma contradição em si mesmo. Ou então o sentido da passagem acima não é o que a maioria das pessoas pensa.
Geralmente, as pessoas costumam pensar que o versículo quer dizer que não se pode mais ter novas ideias, ou mesmo novas revelações da parte. Mas já vimos o problema de se pensar assim.
Quando olhamos para as Escrituras, vemos que frequentemente há uma mudança de instruções. Por exemplo, o Tabernáculo foi revelado no Sinai. Nada foi dito sobre um Templo. Porém, quando o rei Davi desejou construir um Templo para honrar o Eterno, Ele disse:
“[Salomão]… edificará uma casa ao meu nome, e me será por filho, e eu lhe serei por pai, e confirmarei o trono de seu reino sobre Israel, para sempre.” (1 Cr. 22:10)
Analogamente, quando os israelitas não conseguiram celebrar a Páscoa no primeiro mês, o Criador disse:
“No mês segundo, no dia catorze à tarde, a celebrarão; com pães ázimos e ervas amargas a comerão.” (Números 9:11)
Em outras palavras, aquilo que o Eterno nos ensina ou espera de nós pode mudar, não porque Ele muda, mas porque as circunstâncias à nossa volta mudam.
O que seria, portanto, acrescentar ou diminuir coisas da Bíblia, conforme diz Deuteronômio?
A reposta é simples: Como resultado da permissão para construir o Templo, o Senhor não disse que as Bíblias deveriam ser reescritas para agora contemplarem o Templo. A revelação do Sinai não mudou.
Semelhantemente, o Senhor não mandou Moisés revisar o Pentateuco e trocar a data da celebração.
Em outras palavras, a advertência é contra falsificações. Podemos dizer: “Da mesma forma que a Bíblia condena embriaguez, podemos deduzir que a Bíblia é contra uma pessoa tomar LSD e sair de si.” Mas, não podemos mudar a Bíblia e incluir a palavra “LSD” depois da palavra ‘bebida’ pra dar mais peso à proibição.
Outro exemplo: A Bíblia frequentemente tem passagens difíceis porque se referem a uma cultura totalmente diferente da nossa. Por exemplo, a mulher suspeita de adultério e o ritual prescrito em Nm. 5. Seria muito mais cômodo fingir que ele não existe, do que pesquisar e entender que a Bíblia prescreveu aquilo porque antes disso os homens que suspeitavam de suas mulheres as matavam sem qualquer peso na consciência. Não devemos remover coisas da Bíblia simplesmente porque dão trabalho pra responder.
Podemos, e devemos, usar o texto bíblico como inspiração para conhecer a vontade do Criador em nosso cotidiano. Mas, nada justifica inserir ou remover coisas da Bíblia.
Como se pode perceber, todavia, não se deve encerrar um debate partindo para uma visão absolutista das Escrituras, pois nem mesmo a própria Bíblia criou um sistema engessado. A Bíblia estabeleceu mecanismos de renovação para sempre atualizar suas mensagens às diferentes gerações. E essa é a única forma de garantir que um texto seja sempre atual.
Uma pessoa que se apegue à literalidade do texto bíblico pode, ironicamente, estar bem mais distante dos ideais bíblicos do que se entendesse o contexto. Isso pode ser percebido quando a Bíblia, por exemplo, coloca limites na escravidão. Vemos que esses limites foram até onde era possível esperar que os israelitas conseguissem absorver.
Defender, contudo, a escravidão no século XXI d.e.c. porque a escravidão é citada na Bíblia é um exemplo de como a falta de bom senso e de uma exegese saudável podem levar alguém a distorcer a Bíblia, mesmo quando acha que está sendo fiel a ela.