Porque o Yom Kipur é a data que eu menos gosto

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Aviso de antemão: Este texto será polêmico e provavelmente desagradará muita gente. Mas, peço que seja lido até o final, atentamente, para que possa ser plenamente compreendido.

Aproximamo-nos do Yom haKipurim (ou Yom Kipur), o Dia das Limpezas, popularmente chamado de Dia do Perdão. Essa é uma das datas que eu menos gosto dentro do calendário das festividades judaicas litúrgicas. Porque ela acaba sendo um exemplo enorme de quase tudo que está errado na prática religiosa nos dias atuais. Peço ao leitor que me dê a chance de explicar porque.

PRÁTICAS ATUAIS

Primeiramente, vamos definir aqui o que costuma ser a prática do Yom Kipur, em média, nos dias atuais:

O primeiro aspecto é a corrida contra o tempo. Quando o sétimo mês se aproxima, começa aquela corrida contra o relógio para se ter um bom ano. Há um entendimento de que o Eterno estaria escrevendo o destino da humanidade e que ninguém deve ficar de fora.

Quando chega perto da data, começamos a receber pelas redes sociais e afins uma enxurrada de pedidos de perdão, muitas vezes de pessoas que nem sequer conhecemos. Há também uma preocupação muito grande em saber que rezas fazer, ou mesmo quem pode ou não participar do jejum, o que fazer quando o jejum é pesado, etc.

Dia de Kipur, propriamente dito, começa a liturgia mais extensa da tradição judaica. Passa-se horas e mais horas fazendo orações intermináveis. As sinagogas ficam lotadas para as rezas em hebraico, mesmo que muitos ali mal saibam ler o que está escrito. Essa liturgia acaba sendo pesadíssima, considerando que todos estão de jejum. Ao ponto de alguns lugares terem dois hazanim, pois um só não dá conta de todas as orações do dia, sem beber água.

A imagem é, no mínimo, exótica: O mal hálito empesteia o ambiente (ninguém merece!), pois muitos não escovam os dentes nesse dia, mas quase todos estão de gravatas. Ninguém está de sapatos de couro, mas muitos estão com tênis Nike que custa pelo menos uns três dígitos.

E aí temos as rezas propriamente ditas: Listas quilométricas de palavras pedindo perdão por todos os pecados possíveis e imagináveis debaixo da face da terra. Além de mil e uma maneiras de se dizer ao Eterno o quanto estamos arrependidos por algum pecado cometido. Fica a sensação de que se tudo não for verbalizado, não há perdão daquele ponto.

E, por fim, todos contam os segundo até o anoitecer, para que possam correr para comer ou beber alguma coisa. Muitos passam os últimos segundos ao lado de mesa, cronometrando como se fosse ano novo.

Enfim, tudo é bastante denso, pesado e tenso. Mas, em minha humilde opinião, em algum momento o propósito se perdeu. Razão pela qual a data, para mim, acaba perdendo boa parte do seu sentido original.

A DATA

“Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, mesmo de eternidade a eternidade, tu és Senhor.” (Salmo 90:2)

O que muitos não compreendem é que as datas comemorativas no antigo Oriente Médio já existiam muito antes da Torá, conforme é demonstrado pela arqueologia e por textos sumérios, cananeus e até egípcios. Isso também explica porque a Torá não se dá ao trabalho de explicar o funcionamento do calendário. A Torá, simplesmente, ressignifica o que já existe.

Dentro dessa cultura, havia uma ideia de que essa época fosse quando os deuses escreviam (literalmente, diga-se de passagem) o destino da humanidade. Há inúmeros relatos arqueológicos de deuses escrevendo a sorte dos humanos, razão pela qual se corria para agradá-los. Como faz em muitos casos, a Torá ressignificou isso: Não existem deuses e, se há algum tipo de destino, ele está nas mãos do Eterno.

Essas coisas devem ser entendidas, portanto, de forma simbólica, poética e cultural.

O tempo, tal como o mundo, é uma criação do Eterno. Achar, portanto, que existe um tempo no qual o Eterno se senta literalmente pra escrever o juízo da humanidade é mais do que ingenuidade: É quase uma blasfêmia. Pois não só trata o Eterno como se fosse um homem, com trono, um livro para escrever, etc. como ainda por cima sujeita o Eterno ao tempo. E o Eterno é atemporal. Isso está implícito no significado do Tetragrama: Ele é.

A ÊNFASE NO PEDIDO DE PERDÃO

O principal problema do dia é a ênfase excessiva no pedido de perdão. Como dito, há mil e uma formas de pedir perdão previstas liturgicamente. E, como se não bastasse isso, agora temos os pedidos vazios por meio das redes sociais que soam como um “desculpa aí qualquer coisa”.

Para o Eterno, contudo, pedido de perdão tem importância zero. A maneira como Ele opera foi muito bem explicada pelo profeta Ezequiel:

“Mas se o ímpio se converter de todos os pecados que cometeu, e guardar todos os meus estatutos, e proceder com retidão e justiça, certamente viverá; não morrerá. De todas as transgressões que cometeu não haverá lembrança contra ele; pela justiça que praticou viverá.” (Ezequiel 18:21,22)

É a atitude que importa para o Criador dos céus e da terra, não o pedido de perdão.

Devemos deixar, então, de pedir perdão? Não. O pedido de perdão é importante para nós, psicologicamente. Primeiro, porque acalma nossa consciência. Segundo, porque nos ajuda a refletir.

Porém, o que importa pro Eterno é você mudar de atitude. É tentar ser mais íntegro amanhã do que foi hoje. É corrigir seus erros. Se você fizer isso, não precisa nem mesmo pedir perdão pro Eterno te perdoar. Como disse o profeta Ezequiel, o processo é automático. (Aproveito para recomendar a leitura do capítulo 18 de Ezequiel, como um todo.)

Se vamos separar uma data para focar no arrependimento, essa data deveria ser utilizada para fazermos uma REFLEXÃO sobre os nossos atos, não para proferir pedidos mecânicos em listas intermináveis.

E o que seria refletir? É pensar sobre onde erramos, esquadrinhar cada cantinho do coração e pensar no que fizemos de mal. E, então, pensar em como podemos consertar o que fizemos ou, pelo menos, evitar de fazer novamente.

É simples, mas não é fácil olhar para dentro de si. Algumas horas de reflexão fariam muito bem a bastante gente. E as pessoas próximas poderiam nos ajudar.

Já imaginou como evoluiríamos se, pelo menos uma vez por ano, parássemos para OUVIR uns aos outros sobre onde erramos, sem reagir e acusar?

O EXCESSO RITUALÍSTICO

Ritualística é uma faca de dois gumes. Quando bem executada, pode contribuir em muito pro nosso estado de espírito e para nos concentrarmos no Eterno.

Porém, quando a ritualística se torna pesada demais, engessada demais, ou quando vira o centro da questão, ou ainda quando as pessoas se preocupam mais com sua execução do que com aquilo que ela deveria simbolizar, a ritualística deixa de ser uma coisa boa e passa a ser um problema.

O profeta Oséias apontou para isso, quando disse: “Pois desejo misericórdia, não sacrifícios, e conhecimento do Senhor em vez de holocaustos.” (Oséias 6:6)

Quando a ritualística vira um fim e não um meio, uma mera lista de “podes” e “não podes”, torna-se abominável para o Eterno: “As vossas luas novas, e as vossas solenidades, a minha alma as odeia; já me são pesadas; já estou cansado de as sofrer.” (Isaías 1:14)

O JEJUM

Outro ponto muito mal compreendido é o jejum. Novamente, essa não é uma prática criada pela Torá, já existia no antigo Oriente Médio conforme atestado em diversos registros arqueológicos.

O jejum era, essencialmente, uma expressão de tristeza. Por que? Porque para um povo sem a enormidade de opções de lazer e diversão que temos hoje em dia e onde a comida era escassa, as comemorações sempre envolviam comer e comer muito bem. (Mesmo nós ainda temos isso bem presente em nossa cultura, embora em importância menor.)

As festividades bíblicas tinham pouca ritualística porque o mais importante era, literalmente, comer e beber: “Então vende-os, e ata o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher o ETERNO teu Senhor; e aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; come-o ali perante o ETERNO teu Senhor, e alegra-te, tu e a tua casa.” (Deuteronômio 14:25-26)

Ora, se comer e beber bem era sinônimo de alegria, como eles expressavam tristeza? Deixando de comer e beber. Tanto que jejuavam quando estavam tristes pela morte de alguém: “E prantearam, e choraram, e jejuaram até à tarde por Saul, e por Jônatas, seu filho, e pelo povo do ETERNO, e pela casa de Israel, porque tinham caído à espada.” (2 Samuel 1:12)

Da mesma forma, nos momentos felizes as pessoas passavam óleos aromáticos, banhavam-se. Logo, nos momentos tristes vestiam pano de saco e jogavam cinzas e pó sobre suas cabeças: “Quando Mardoqueu soube de tudo o que tinha acontecido, rasgou as vestes, vestiu-se de pano de saco e cinza, e saiu pela cidade, chorando amargamente em alta voz.” (Ester 4:1)

E assim surgiu a prática do jejum. Era uma forma de mostrar ao Eterno que se estava triste. É uma expressão cultural tipicamente semita, não uma lista de “podes” e “não podes”, pois essas listas acabam gerando incoerência a medida que o tempo passa.

Portanto, o jejum é apenas uma expressão exterior do arrependimento. Não é um ato litúrgico ou religioso, que deveria fazer alguém passar mal, perder o foco, ou mesmo se preocupar ao ponto do exagero.

Mais uma vez, por Eterno o jejum tem importância zero. O que importa é o que ele representa.

Por isso, o próprio Eterno diz, em Isaías: “‘Por que jejuamos’, dizem, ‘e não o viste? Por que nos humilhamos, e não reparaste?’ Contudo, no dia do seu jejum vocês fazem o que é do agrado de vocês, e exploram os seus empregados. Seu jejum termina em discussão e rixa, e em brigas de socos brutais. Vocês não podem jejuar como fazem hoje e esperar que a sua voz seja ouvida no alto. Será esse o jejum que escolhi, que apenas um dia o homem se humilhe, incline a cabeça como o junco e se deite sobre pano de saco e cinzas? É isso que vocês chamam jejum, um dia aceitável ao ETERNO? “O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? Aí sim, a sua luz irromperá como a alvorada, e prontamente surgirá a sua cura; a sua retidão irá adiante de você, e a glória do Senhor estará na sua retaguarda.”” (Isaías 58:3-8)

Acredito que as palavras do profeta dispensam maiores comentários. Ao invés de se abster de comer e beber, o que importa pro Eterno é nos abstermos de fazer aquilo que queremos, em prol de agir em justiça e retidão.

Isso significa que a prática do jejum de alimentos deve ser abolida? Claro que não! Significa apenas que ela deve ser vista adequadamente, dentro da sua real importância enquanto um símbolo de que devemos ter auto-controle e agir em justiça. Jamais deve ser vista com importância exagerada que se vê hoje em dia. Ela é apenas um símbolo exterior do que importa interiormente.

CONCLUSÃO

Como se pode ver, o problema não está no Yom Kipur, mas sim no fato de que o ser humano foca nas coisas erradas. E esta é talvez uma das datas mais propícias a perder o seu sentido e objetivo originais.

Primeiramente, porque pouca gente estuda qual é o objetivo real da data. Segundo, porque há um foco excessivo das pessoas no que fazer, ao invés de na reflexão e transformação interior.

Que possamos entender que os elementos culturais, calêndricos e ritualísticos têm por finalidade nos ajudar a “entrar no clima” e nos concentrar naquilo sobre o qual precisamos refletir perante o Eterno.

Para o Eterno, em si, essas coisas têm importância zero, conforme Ele deixou claro nos profetas por várias vezes.

Desprezamos então tudo o que é cultural, calêndrico e ritualístico? É claro que não, pois somos seres humanos e precisamos dessas coisas para manter o foco.

Porém, é importante que não façamos delas o cerne da questão. O foco e alvo do Yom Kipur deve ser a reflexão e a mudança de atitude.

Comecei o texto de forma polêmica, mas encerrarei com o oposto do que disse antes: Se o foco for corrigido, o Yom Kipur deixa de ser a pior data do calendário, para ser a mais maravilhosa de todas.

Afinal, ajudar o ser humano a se transformar e mudar de vida e andar cada vez mais em retidão é a principal meta da Bíblia Hebraica. E se uma data tem potencial para contribuir com isso, então torna-se o dia mais precioso do ano!

E se você não é judeu, isso não tem a menor importância. Seja no próprio Yom Kipur ou noutro dia de sua preferência, procure SEMPRE tirar um momento para fazer exatamente isso: Refletir sobre suas ações, fazer reparação sobre o que estiver ao seu alcance, e buscar se corrigir perante o Criador. Afinal, essa é a essência e o espírito desta data.