INTRODUÇÃO
Há um personagem bíblico que quase ninguém conhece, mas que era extremamente popular e conhecido nos tempos dos antigos israelitas.
E a razão para que ele não seja conhecido é por causa de ajustes feitos pelos massoretas no texto bíblico entre os séculos século 7 e 10 d.e.c..
Observe essas duas passagens do livro de Ezequiel traduzidas, bem como o Texto Massorético logo abaixo:
“Ainda que estivessem no meio dela estes três homens, Noé, Danel e Jó, eles pela sua justiça livrariam apenas as suas almas, diz Eterno SENHOR.” (Ezequiel 14:14)
וְהָיוּ שְׁלֹשֶׁת הָאֲנָשִׁים הָאֵלֶּה, בְּתוֹכָהּ–נֹחַ, דנאל (דָּנִיֵּאל) וְאִיּוֹב: הֵמָּה בְצִדְקָתָם יְנַצְּלוּ נַפְשָׁם, נְאֻם אֲדֹנָי יְהוִה
“Eis que tu és mais sábio que Danel; e não há segredo algum que se possa esconder de ti.” (Ezequiel 28:3)
הִנֵּה חָכָם אַתָּה, מדנאל (מִדָּנִיֵּאל): כָּל-סָתוּם, לֹא עֲמָמוּךָ
Na tradução acima, utilizei o termo original: Danel (דנאל). Porém, no texto massorético há uma nota para que onde está Danel, se leia Daniel (דניאל). Esse tipo de ajuste no texto, conhecido como Ketiv e Qerê (i.e. como está escrito e como se lê) aparece em alguns trechos da Bíblia Hebraica, onde a leitura original não fazia sentido para os massoretas.
É tentador sucumbir a teorias conspiratórias. Mas, a razão mais provável que levou os massoretas a fazerem isso é simples de entender: Quando o texto massorético foi compilado, a memória de Danel já havia desaparecido do povo judeu e, por isso, provavelmente os massoretas imaginaram que se tratava de uma glosa. E o único personagem bíblico importante o suficiente para ser mencionado assim seria Daniel.
A HISTÓRIA DE DANEL
Felizmente, porém, a Arqueologia resgatou a história desse importante personagem, citado por duas vezes nas Escrituras. Porque tanto um texto encontrado nas cavernas do mar morto, o Livro de Jubileus, quanto as cartas ugaríticas, ambos encontrados na primeira metade do século 20, trouxeram nova luz a esse personagem misterioso.
O nome Danel significa literalmente “juiz de El”. Era um personagem bastante importante da mitologia cananéia, sendo objeto de diversos contos. Essa mitologia influenciou o povo de Israel, que o adotou como personagem.
Isso não era incomum entre os israelitas. Os outros dois personagens citados por Ezequiel também foram herdados de outras culturas. A narrativa de Jó, por exemplo, é de origem não-israelita, ao passo que Noé é, na realidade, uma releitura monoteísta dos mitos diluvianos sumérios.
No único texto parcialmente completo sobrevivente, o Épico de Aqhat, Danel é descrito como um juiz justo, sábio e íntegro, e um servo de El. Ao lado, a tábua da história de Danel, datando de cerca de 1350 a.e.c. e encontrada em Ugarit, hoje parte do acervo do Museu do Louvre, em Paris.
Na mitologia cananeia, Toru-El – literalmente “O Poderoso Touro” – era o chefe de seu panteão, ao passo que Ba’al (frequentemente representado por um bezerro) era tido como seu filho. Toru-El é às vezes chamado apenas pelo termo EL (Poderoso), que acaba sendo usado também pelos israelitas para se referir ao Eterno.
Sendo assim, não é difícil entender como o personagem de um juiz justo e íntegro, sábio em seus caminhos, e um servo de El, acabaria sendo tomado emprestado pela cultura israelita.
No Épico de Aqhat, pouco se fala sobre Danel, pois o texto se foca em Aqhat, um filho que nasceu a Danel depois que esse clamou a El, mas que acaba sendo morto por Anat, deusa cananéia da guerra e esposa de Ba’al. Danel aparece apenas pedindo pelo filho no Templo de El e, depois, pranteando-o, pedindo ajuda a Ba’al para encontrar seu corpo e enterrando-o na Galiléia.
A VERSÃO ISRAELITA
Certamente que na versão israelita dos contos populares, Danel teria se tornado um monoteísta, servo exclusivo do Eterno. É certamente a tais contos populares que alude o profeta Ezequiel. Infelizmente, esses contos não sobreviveram.
A figura de Danel também acabou se tornando base para o próprio personagem bíblico Daniel, especialmente em seus feitos heróicos em Dn. 1-6 que, na realidade, são textos figurativos. A Jewish Study Bible, em sua introdução ao livro de Daniel, assim comenta:
“A figura de Daniel, conhecida do Épico de Aqhat encontrado em Ugarit e mencionado em Ezequiel 14:14; 28:3 como um herói sábio e reto do passado, se torna aqui um novo modelo da fidelidade judaica ao Eterno.” (Daniel – Introduction)
Embora essa seja a forma mais conhecida de como Danel se tornou parte da cultura israelita, não é a única a sobreviver. No período do Segundo Templo, as lendas de Danel ainda eram bastante populares, ao ponto de Danel ter se tornado tio e sogro de Enoque, no livro de Jubileus:
“E no décimo segundo jubileu, na sétima semana, ele tomou para si uma esposa, e seu nome era Edna, a filha de Danel, a filha do irmão de seu pai, e no sexto ano nesta semana ela lhe deu um filho e ele chamou seu nome de Matusalém.” (Jubileus 4:16)
Enoque, no livro de Jubileus, é associado à retidão de caráter e ao conhecimento da sabedoria divina. Sendo assim, sua vinculação a Danel não surpreende. É uma maneira de dar ainda maior credibilidade a Enoque, que viria a ter um papel de destaque em Jubileus e outras obras correlatas.
Além de trazer maior entendimento sobre de onde surgiram os contos sobre Daniel – alguns tendo sido compilados na Bíblia Hebraica e outros relegados aos apócrifos – bem como elucidar as passagens de Ezequiel, há outro aspecto fascinante na história de Danel.
CONCLUSÃO
Quando entendemos quem foi Danel, então percebemos que em Ezequiel 14, nenhum dos três justos mencionados hipoteticamente era israelita.
Isso certamente é de propósito, pois o Eterno estava insatisfeito com Judá e essa era uma forma sutil de dizer que nenhum justo havia em Israel naquele momento.
Isso também mostra que o pensamento sobre haver justos nas nações era muito mais forte e presente em Israel do que em tempos posteriores. Especialmente quando comparados com livros como Jonas, produzidos com objetivo de confrontar o ultra-nacionalismo pós-exílico que chegava a supor que o Eterno não se importava com outras nações.
E para nós, leitores modernos, fica a mesma lição: Embora Israel seja uma nação-modelo, escolhida pelo Eterno para mostrar à humanidade o que seria uma sociedade justa, nas relações individuais com pessoas, não havia a noção de que as pessoas pertencentes ao povo judeu eram de alguma forma melhores ou superiores às outras.