A Escravidão Moderna

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“Não se aproveitem do pobre e necessitado, seja ele um irmão israelita ou um estrangeiro que viva numa das suas cidades.” (Deuteronômio 24:14)

Dias atrás, resolvi pedir almoço através de um aplicativo de celular. A taxa de entrega ficou em R$ 3,90. O motoboy levou 15 minutos para chegar em minha casa e provavelmente mais 15 minutos para retornar ao local onde estava inicialmente.

Se levar em consideração as taxas cobradas pelo banco e pelo aplicativo, mais o custo do combustível, o motoboy recebeu, pelo serviço, algo em torno de R$ 2,00, por meia hora de trabalho. Isso seria equivalente a um salário de por volta de R$ 672,00 mensais, sem qualquer tipo de segurança, ou benefício.

Na mesma época, numa reportagem para uma radio, um executivo de outro aplicativo enaltecia esse tipo de trabalho como forma de empreendimento. A reportagem falava sobre pessoas que trabalhavam de bicicleta por 12h diárias, mais uma vez com ganhos extremamente baixos e sem nenhum tipo de segurança ou benefício.

Mais recentemente, um entregador de um terceiro serviço morreu depois de trabalhar até a exaustão e ter um AVC. Embora houve também falha no atendimento médico, o aplicativo sequer tinha recursos para que ele pedisse socorro numa situação adversa, além de encorajar o trabalho de seus “colaboradores” até a exaustão.

Meses atrás, o dono do site chinês Alibaba, um dos maiores de e-commerce no mundo, disse que se alguém não deseja trabalhar 12 horas por dia, 6 dias por semana, não serve para trabalhar para eles. A empresa bate recorde de lucro a cada ano, já se aproximando dos 60 bilhões de dólares anuais. Na China, não é incomum que trabalhadores da área de tecnologia cometam até suicídio devido ao excesso de estresse e de exaustão de trabalho.

Em 2017, outra gigante do comércio eletrônico, a norte-americana Amazon, chocou a sociedade norte-americana quando dados estatísticos mostraram que 3 em cada 4 de seus funcionários dependiam de selos de alimentação do governo dos EUA, uma espécie de bolsa família distribuído para que as pessoas mais pobres tenham o que comer. Com seu dono figurando na lista dos maiores bilionários do mundo, a Amazon também é conhecida por exigir dedicação em tempo integral de seus funcionários.

Até hoje, várias das principais empresas produtoras de chocolate no mundo, incluindo a suíça Nestlé e as americanas Hershey e Mars, utilizam mão de obra infantil nas fazendas de cacau na África. Estima-se que 2 milhões de crianças trabalhem de sol a sol, ganhando em média 36 dólares por mês, nessa linha de produção. Questionadas, as empresas já estipularam datas limites para acabar com a prática por várias vezes, nunca cumprindo tal objetivo.

O que todas essas coisas têm em comum? São formas modernas de escravidão, frequentemente justificadas pretextos cruéis e desumanos, como “aceita quem quer” ou “é melhor do que nada”. Na realidade, valem-se da miséria e do sofrimento para explorar pessoas desesperadas.

“Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas ao sétimo sairá livre, de graça.” (Êxodo 21:2)

Quando a Torá, a chamada Lei Mosaica, foi escrita, a servidão era muito diferente daquela que temos hoje em dia. Era comum, por exemplo, uma pessoa se vender como servo para poder pagar suas dívidas. Frequentemente, nunca saíam daquela condição.

O que a Torá fez, portanto, foi colocar limites para que a situação não saísse do razoável, porque a Torá é totalmente contrária à ideia de um ser humano ser explorado por outro.

E não foi só isso que a Torá fez. Há várias outras proteções que a Torá criou para impedir que um servo fosse explorado. Por exemplo:

  • Servos tinham direito a um dia de repouso, tanto quanto qualquer outra pessoa. (Ex. 20:10)
  • Matar um servo é homicídio. (Ex. 21:20)
  •  Uma menina criada como serva deveria ser desposada, não podendo ser tratada como concubina permanente. (Ex. 21:7-9)
  • Um servo agredido tinha seu débito perdoado (Ex. 21:26-27)
  • Uma pessoa menos favorecida não poderia ser obrigada à servidão (Lv. 25:39)
  • Um servo jamais deveria ser maltratado ou tratado com rigor excessivo (Lv. 25:40)
  • Servos participavam dos banquetes festivos das solenidades e comiam junto com seus senhores (Dt. 16:14)
  • Um servo que fugisse de um senhor cruel não seria entregue nem oprimido (Dt. 23:15-16)

É claro que muitas dessas coisas seriam consideradas ainda primitivas para a nossa realidade. Porém, para aquela sociedade, o avanço social promovido pela Torá foi enorme, pois servos eram tratados como meras propriedades e suas vidas de nada valiam para seus senhores.

Não devemos, portanto, olhar para a Torá com olhos dogmáticos, mas sim entender qual foi o PROPÓSITO dos mandamentos, para adequadamente aplicar seus valores à nossa própria realidade. Quando foi escrita, a Torá combateu a escravidão da realidade daquela sociedade. A nós, cabe combater a da nossa.

A maior preocupação da Torá é proteger os menos favorecidos e evitar a exploração e a desumanização. Devemos, portanto, caminhar nessa direção. Tomar o caminho inverso, como às vezes faz a humanidade, é pecado gravíssimo aos olhos do Eterno.

Nada disso é novidade, pois o profeta Ezequiel ao criticar os líderes de Jerusalém, disse: “Ao povo da terra oprimem gravemente, e andam roubando, e fazendo violência ao pobre e necessitado, e ao estrangeiro oprimem sem razão.” (Ezequiel 22:29)

Oprimir os necessitados foi justamente um dos motivos que levou à destruição e ao exílio de Israel e Judá, para que servisse de exemplo de como o Eterno abomina tais coisas.

Mas o que podemos fazer a respeito? Listo aqui algumas coisas:

1) EVITE SE APROVEITAR DA SITUAÇÃO

Tanto quanto possível, procure evitar tirar proveito da situação. Não explore alguém que esteja em situação desfavorável, simplesmente para conseguir um pouco mais de desconto ou economia. Esse tipo de ganho é abominável e o Eterno jamais abençoará tal coisa com prosperidade.

Lembre-se que a Bíblia Hebraica diz: “Não explore os pobres por serem pobres, nem oprima os necessitados no tribunal.” (Provérbios 22:22)

2) PRATIQUE A GENEROSIDADE

Quando somos obrigados a conviver com a exploração, uma das coisas que podemos fazer é praticar a generosidade. Por exemplo, no caso que citei, procurei dar uma gorjeta adicional porque sabia que aquele entregador dependia disso para sobreviver. E assim devemos agir, fazendo o que estiver ao nosso alcance.

Lembre-se da recomendação da Torá: “Quando entre ti houver algum pobre, de teus irmãos, em alguma das tuas portas, na terra que o ETERNO teu Senhor te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua mão a teu irmão que for pobre;” (Deuteronômio 15:7)

3) NÃO FECHE OS OLHOS

Um dos maiores problemas é que temos a tendência a fingir que algo não é problema nosso. Por exemplo: Se uma marca de roupas explora imigrantes, o que eu tenho a ver com isso? A marca de roupas precisa de consumidores e se os que dizem servir o Eterno boicotarem seus serviços ou protestarem, maiores são as chances de que eles revejam seus conceitos.

Lembre-se ainda do que a Bíblia Hebraica nos ensina: “O justo se informa da causa dos pobres, mas o ímpio nem sequer toma conhecimento.” (Provérbios 29:7)

4) PRESSIONE O PODER PÚBLICO

Devemos ter muita atenção quando votamos em alguém, indagar quais são seus projetos quanto aos menos favorecidos, cobrar de nossos administradores (tendo ou não votado neles, não importa) que tenham políticas públicas voltadas para quem realmente mais precisa.

A Bíblia Hebraica diz que essa é uma das marcas dos filhos do Altíssimo: “Fazei justiça ao pobre e ao órfão; justificai o aflito e o necessitado. Livrai o pobre e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.” (Salmos 82:3-4)

5) LEMBRE-SE: VOCÊ COLHE O QUE PLANTA

Há mais um bom motivo para agirmos em favor dos humildes: Nós colhemos o que plantamos. Se desejamos a misericórdia do Eterno conosco, sejamos misericordiosos com os pobres.

Lembre-se: “Como é feliz aquele que se interessa pelo pobre! O Senhor o livra em tempos de adversidade.” (Salmos 41:1)